José Mário Branco - Mudam-se os Tempos Mudam-se as Vontades (1971)


Os tempos mudaram. As vontades mudaram. Não foi fácil. Mas jamais algo desta envergadura seria fácil. Enormes. Amanhã marcam-se os 44 anos passados sobre a Revolução de Abril, a nossa revolução. Será o dia de sair à rua, respirar liberdade de cravo ao peito, e... reconhecer que não temos noção verdadeira de como era viver noutros tempos, mas também seremos nós os que não vão deixar que volte a acontecer.


Havia um «inteligente» que dizia que as canções eram para acabar. Tão enganado estavas...

A verdade é que muitos, e bem mais inteligentes -- diga-se --, viram-se obrigados ao exílio. Muitos desses poetas, músicos e escritores de canções, viram a necessidade de levarem a voz de todo um povo além de Portugal, e de lá longe tentaram igualmente fazer-se ouvir. 

É o caso desta pérola discográfica, "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", de 1971. Eram já vários os anos de exílio em França quando por essa altura o primeiro LP de José Mário Branco viu a luz do dia. Palavras faltam para descrever quem foi, quem é, e quem será Mário Branco.  

Mas as grandes obras primas não se fazem das individualidades. A voz e guitarra de José Mário Branco encontraram na lírica de Natália Correia, Alexandre O'Neill, Luís de Camões e Sérgio Godinho a mais forte âncora que mantém este disco à tona, no revolto mar da eternidade. 

Este é um dos obrigatórios. Ouve. Escuta. Lê. Rejubila. Porque em 2018 podes fazê-lo. Para além de poderes ouvir o disco na totalidade mais abaixo, deixo-te aqui também um pedaço de genialidade poética de Natália Correia, que na forma de música tem lugar em "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades". Por algum motivo, esta mesma música dá pelo nome "Nevoeiro" no playlist do álbum no Spotify, faixa número cinco.


"Queixa das Jovens Almas Censuradas"
Música: José Mário Branco
Letra: Natália Correia 

Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte


Que os valores de Abril não caiam no esquecimento, porque de facto a sua "dimensão não é a vida, nem é a morte", "mas se todo o mundo é composto de mudança, troquemo-lhes as voltas que ainda o dia é uma criança"!


rafael silva

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