Mapache - From Liberty Street (2020)


Nem só dos meus álbuns prediletos se compõem as sugestões do Notas Longas. Na mesma lógica, nem só de nomes sonantes se compõem as bandas sonoras das nossas vidas. Por vezes fazemos descobertas que nos prendem a atenção, por uma razão ou por outra. Umas vezes vamos deliberadamente ao encontro de algo, embora não sabendo ao certo o que isso seja, eventualmente receberemos algo em troca dessa procura. Outras vezes, talvez fruto de um algoritmo de sugestão de uma qualquer plataforma, somos simplesmente presenteados com aquilo mesmo que procurávamos.

A vida é também ela um bocado assim.

Em ambos os casos pode acontecer que seja um simples acorde ou um verso menos banal o responsável por sermos logo apanhados na teia da atenção. Somos pescados, por assim dizer. A sobrancelha arqueia-se e o ouvido dominante põe-se em jeito de melhor escutar. Quem diz o conteúdo diz também a forma, como é óbvio. A capa de um disco pode ser também ela um chamariz mudo que, cumprindo o seu desígnio primordial, nos atrai para si sem que nos apercebamos. O próprio nome da banda pode desencadear esse despertar dentro nós. Quem sabe? Tanta coisa...

Mas eis o que me aconteceu.




" Me voy pa’l pueblo
Hoy es mi día
Voy a alegrar toda el alma mía
Me voy pa’l pueblo
Hoy es mi día
Voy a alegrar toda el alma mía

Tanto como yo trabajo
Y nunca puedo irme al basilón
No sé que pasa con esta guajira
Que no le gusta el huateque y el ron
Ahora mismo la voy a dejar
En su bohío asando maíz
Me voy pa’l pueblo a tomarme un galón
Y cuando vuelva se acabo el carbón

(...)

Desdel día que nos casamos
Hasta la fecha trabajando estoy
Quiero que sepas que no estoy dispuesto
A enterrar mi vida en un rincón
Que lindo el campo muy bien ya lo sé
Pero pa’l pueblo voy echando un pie
Si tú no vienes mejor es así
Pues yo no sé lo que será de mí "

(...)

in Me Voy Pa'l Pueblo, From Liberty Street (2020)


Intrigado pelo curioso nome deste duo, tive que recorrer ao velho e sábio Google. Como pessoa prestável que sou e, preocupado com a falta de tempo do prezado leitor, passo agora a transcrever precisamente aquilo que pude reter da minha pesquisa.

A partir daqui, a vossa voz vai inevitavelmente descer uns quantos degraus na escadaria das tonalidades e assemelhar-se assim à de Eduardo Rego. Tudo isto na vossa cabeça, é claro.


*****


Nas planícies da costa Oeste dos Estados Unidos habita um ser bastante peculiar e que dá pelo nome de Mapache. Mapache é um vocábulo espanhol que se traduz para português corrente como 'guaxinim', sendo também conhecido entre a comunidade que os estuda como Procyon Lotor.

Este espécime tem umas quantas particularidades. Na fotografia em cima, podemos observa-lo num habitat pouco natural e que definitivamente não é o seu. Não tem ainda um nome oficial pois é ainda alvo de estudo e de atentas observações mas, pelo que já se conseguiu apurar, é certo tratar-se de uma espécie de guaxinim de duas cabeças. Uma delas responde por Sam Blasucci e a outra por Clay Finch.





" I ain’t got no plans tonight
But hang around you and your dog
And look up at the stars on the roof at night
Lawless like a cactus flower

Fall is creepin’ through the trees
It keeps me from losin’ my mind
Makes me peek through the shades at night
Lookin’ out for cactus flower "

(...)

in Cactus Flower, From Liberty Street (2020)


Originário de Los Angeles, este guaxinim bilingue faz-se entender tanto em inglês como em espanhol. De acordo com a investigação mais actual, os cientistas suspeitam que os seus mais antigos antepassados vivos terão tido o seu auge enquanto espécie nos anos 60 e 70. Terá sido por volta desta altura que se terá verificado a enorme expressão territorial que caracterizou uma época, levando a espécie a todo o continente norte americano e além mares. Os seus ascendentes directos terão sido homens de extensas barbas e cabelos a condizer. Registos fotográficos da altura mostram grandes aglomerados destes indivíduos, com vestimentas largas e floridas, estas garantidamente perfumadas com aromas frutados e herbáceos. 

O exponente máximo desta e de outras espécies similares aconteceu em 1969, no outro extremo deste vasto país. Nos dias que correm não são muitos os exemplares vivos. De entre tudo o que já se conhece dessa época e do Mapache, já se conseguiu encontrar algumas semelhanças com outras espécies amplamente difundidas de então. De entre vários, ressalva-se o caso dos Grateful Dead e o dos Crosby, Stills, Nash and Young, talvez os mais gritantes. No mesmo registo, as influências dos The Band e Bob Dylan também não passam em claro. Sem grande esforço, e ainda que fora dos temas florais, conseguimos também discernir traços dos Everly Brothers por entre as suas vocalizações harmoniosas que tão bem os caracterizam


Mas bem, de nada serve rotular este guaxinim de duas cabeças.





Someday I’ll stop all my tryin’
And be just like I am, yeah
One of these days I’ll come runnin’ to you
And pick you off the ground, yeah

‘Cuz it’s see through, baby
See through take it or leave it "

(...)

in See Through, From Liberty Street (2020)



Os rumores da existência do Mapache remontam aos inícios de 2016, e desde então tem sido avistado a espalhar boas vibrações por vários lugares. O primeiro avistamento em público foi reportado um ano depois, em Outubro, com o surgimento de um disco com esse mesmo nome: Mapache. 




Mapache, Mapache (2017)


*****



Mantendo o registo calmo e relaxado que o álbum suscita, mas deixando de lado a brincadeira de relato estilo-BBC de domingo de manhã, pouco mais me resta acrescentar sobre este disco. Em 14 músicas que passam a voar, 'From Liberty Street' é um disco que soa ao Oeste distante, tanto no tempo como no espaço. Em virtude da sua simplicidade melódica e lírica, torna-se logo cativante desde o início.

A partir do momento em que carregamos no play, um chapéu de cowboy materializa-se no topo da nossa cabeça e fica a cobrir-nos metade da vista. Uma cabeça de trigo aloja-se no canto da nossa boca. As pálpebras semicerradas protejem os olhos de uma claridade que fere. A paisagem é desértica e obriga-nos a procurar abrigo num alpendre de um qualquer saloon, onde aí, uma lufada fresca de música de guitarras acústicas e belas harmonias nos convida a ficar. São Sam e Clay. Talvez no faroeste, talvez numa planície verdejante com dezenas de gente, como nós, reunidos pela paz e pela música. De qualquer das formas, permanecemos. A música soa-nos a um tempo específico numa América em particular, - ela própria forjada do calor das suas fortes influências culturais -. Nesta viagem ao passado, o que ouvimos é uma reinvenção musical genuína e autêntica, e o resultado é deixarmo-nos mesmo ficar.




Me da muerte
Tu sonrisa
Me da muerte
Cada vez que
Tú pasas
Me da muerte
Pierdo mi vida
Me da muerte
Mejor te vas para siempre, vas

Y los días no me esperan
Se van al despertar
Ya se van al despertar

(...)

No me importa si estés en la onda
O prefieres soledad
Tan solo, tú
Me encantas solo, tú "

in Me Da Muerte, From Liberty Street (2020)


Parece fácil compor canções assim, mas não é. É difícil fazer parecer simples.

É preciso extrair o blues, o folk, e o bluegrass americanos na quantidade certa, a partir da massa de ar quente que povoa os desertos. Só depois é possível expirar algo refrescante e de fácil audição como ouvimos aqui. Algo harmonioso, leve e inspirador. Não tem de ser genial para ser bom, mas para ser bom terá de ser em parte genuíno. No fim do dia, temos aqui um conjunto de músicas que embalam e que também nós gostaríamos de ser capazes de acompanhar com a voz. Talvez algum de vocês o consiga, sei que o tentarão.




I just steal away somewhere and pray
Every time I do a deed I shouldn’t do
Every time I say a word I shouldn’t say
Well I’ll tell you what I do
And it brings a blessing too
I just steal away somewhere and pray 

 I just steal away and pray
I just steal away and pray
And I ask my blessed lord to lead the way "

(...)

in I Just Steal Away And Pray, From Liberty Street (2020)




Fica aqui a sugestão: 'From Liberty Street', dos Mapache.

Um trabalho com 15 dias de vida que, ao décimo quinto de existência, descobriu por si próprio o caminho até ao Notas Longas. O companheiro ideal de trabalho pela manhã ao acordar, ou então ao final da tarde. Ele ajusta-se a vocês. A verdade é que, enquanto hoje chovia a potes lá fora, cá dentro escutava-se o folk-country-blues - uma das combinações que melhor condiz com o tamborilar incerto da chuva.

Espero que vos traga a mesma leveza que me trouxe a mim, ou então que seja outra diferente. Ainda assim, não tenho dúvidas de que será algo bom.

Mantenham-se leves. Mantenham-se bem.






rafael silva



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