Ghostly Kisses - Alone Together (EP, 2019)


(sugestão para tocar bem ao fundo e baixinho enquanto lês a nota introdutória)


*
- Une Ballade Des Dames Perdues


 "Mais où sont les neiges d'antan?"

I sing in the green dusk
Fatuously
Of ladies that I have loved — Ça ne fait rien! Hélas, vraiment, vraiment.

Gay little ghosts of loves in silver sandals
They dance with quick feet on my lute strings
With the abandon of boarding school virgins
While unbidden moths
Amorous of my white seraglio
Call them with soundless love songs
A sort of ethereal seduction

They hear, alas
My women
And brush my lips with little ghostly kisses
Stealing away
Singly, their tiny ardent faces
Like windflowers from some blown garden of dreams
To their love nights among the roses

I am old, and alone
And the star dust from their wings
Has dimmed my eyes
I sing in the green dusk
Of lost ladies — Si vraiment charmant, charmant.

William Faulkner
In William Faulkner: Early Prose and Poetry.  Comp. and Intro. Carvel Collins. Ill. London: Johnathan Cape, c1965].

*


William Faulkner quer-nos contar algo em Une Ballade des dames perdues. É em francês que o faz e que nos deixa o mote para um diálogo na primeira pessoa com o passado, começando por trazer de novo à vida e bem descaradamente aquele que terá sido o primeiro poeta maldito do romantismo francês, François Villon. Segue-se depois, por entre os evocativos suspiros das cordas do seu alaúde, o jorrar de memórias dos seus fantasmas femininos, o qual não vale a pena conter. Ele, desta feita na pele de sujeito poético melancólico, c(o)anta-nos sobre senhoras, dames, ladies... mulheres perdidas que lhe ficaram de tempos idos. C(o)anta-nos o amor do qual tem saudades e que verbaliza no jeito que melhor lhe assiste, e assim discorre, percorrendo o seu livro de memórias. Todo o poema remete para um passado, que mais ou menos distante, é válido de recordação. 


Ao início presenteia-nos com uma pergunta, pergunta essa que é também ela uma distante evocação ao antigo poeta francês. Chega-nos com um sotaque francês medieval no qual ressoam as palavras de Villon: Mais où sont les neiges d'antan? (Mas onde estão as neves do passado?). 



Apesar de afirmar a sua velhice solitária, Faulkner não deixa no entanto de continuar a evocar os amores antigos que nele permaneceram vivos, revivendo-as através de memórias que mais se assemelham a silenciosas canções de amor numa "espécie de sedução etérea". Somos então levados a crer que Faulkner não estava na verdade sozinho como dizia estar. Na pior das hipóteses estaria sozinho com elas. Estaria sozinho-acompanhado. Estariam sozinhos-juntos, e assim terão permanecido até que as memórias, por fim, se desvaneceram com a chama da sua vida.

Foi precisamente nestes cuidados versos, em Une Ballade Des Dames Perdues, que uma tal de Margaux Sauvé encontrou o seu nome artístico. 




(fotografia: https://ghostlykissesmusic.com)



" Brush my lips with your little ghostly kisses. "




Se no século passado Faulkner se havia já apropriado de um dos versos de Villon para a construção do poema que tivemos oportunidade de ler em cima, anos mais tarde foi a vez da franco-canadiana Margaux Sauvé pedir emprestados dois vocábulos que terminam um dos versos do mesmo poema. Soam demasiado bem juntos para não terem eles também uma voz e pele próprias. Ghostly Kisses, parece-me uma adjectivação propositadamente criada por Faulkner a pensar numa doce e delicada voz como a de Margaux Sauvé. De tão bem que lhe assenta, deixemo-la inundar-nos os sentidos.

'Alone Together' firma-se como um belo conjunto de curtas mas sentidas canções que foi lançado em Outubro passado pela très belle Margaux Sauvé.


Não deixando de ser uma profunda reflexão interior sob a forma de uma experiência musical, é uma dedilhada rendição acústica de algumas das suas canções de trabalhos anteriores. Aqui, despindo-lhes a anterior camada dreammy pop, mostra-nos a sua pele, tal qual ela é. Apresenta-nos, a nu, a inexplicável mas unificadora razão para a existência de duas metades cuja ligação nos parece íntima e que acontece através da apaixonante essência das essências: o amor - o paradoxo dos paradoxos. A mundana simplicidade e veracidade dos poemas aqui cantados enternece e ressoa no âmago deste que vos escreve. Aqui, delicadamente musicados e reinterpretados, estão cinco poemas vestidos com roupa de adormecer. São-nos aqui deixados para nos fazerem sonhar acordados e a suspirar por aquelas e aqueles que à noite não nos permitem dormir.



Play.



A circunferência para a qual somos convidados a entrar inicia-se com "Touch" para mais tarde nela eventualmente se fechar. Aqui somos imediatamente recebidos e seduzidos por fantasmagóricos beijos, onde o piano ajuda a introduzir a temática e aura deste pequeno desabafo de vinte e poucos minutos. A introdução é delicada e é em jeito de confissão. Deparamo-nos com desejos e dúvidas, ecos remanescentes de uma ligação que estando distante no tempo, se reflecte nesse momento na ausência de alguém.



*
"Touch"

Every day, I keep thinking
About you and I
How good we are together
When we're alone together
(...)
Can you tell me why you keep your distance like this?
(...)
I wanna feel your touch
(...)
Will you ever let me in?

(...)

You read me well
Better
than I read myself
I like
I like you best
When there is no one else, only on our own
(...)
Can you tell me why you keep me in the dark like this?
(...)
I wanna feel your touch
(...)
Will you ever let me in?
*

O desabafo seguinte segue igualmente a senda pessoal do anterior, desta feita fazendo-se acompanhar de uma guitarra e piano que constroem os acordes que vão suportando os versos. Existem amarras onde existir amor. Desengane-se quem achar o contrário. Amarras a lugares e pessoas. "The City Holds My Heart". Há contradições nos sentimentos, nas vontades e nas acções, nas razões e justificações que sucessivamente se amontoam e parecem nunca trazer sentido, por mais que se tente. Quiçá, não terá este sido inventado para fazer sentido, nem para ter outra forma que não a sua inexorável e abstrata existência.


*
"The City Holds My Heart"

Babe, what do you want to know?
We've already been over this
A million times
Wait, though I told you I would be
There when you needed me
Can't pretend to be someone else for you

And I know, I know, I know, I know,
There is something missing
Something that was always there before

And I know, I know, I know, I know
I'll still love you even world's apart

The city holds my heart
Within walls of glass and steel
Can't you see I just can't go?
These walls are all I know
The city holds my heart
Like a shell
I cannot feel surrounds
I want you to go
I'm scared to tell you so

Babe, what do you want from me?
We've already tried everything
Hold me
Don't ask me why I still can't leave
This is where I feel at home
This is where my heart always belonged

(...)
*

Em "Empty Note" a tormenta do passado e as interrogações que com ele ressurgem voltam a ganhar eco. As cordas do piano vibram pontualmente. A voz de Margaux, sempre terna e etérea, antecipa de novo um dedilhado arpegiado no qual somos embalados e guiados até ao seu refrão de mãos dadas com as sombras do seu passado - e do nosso. No passado moram aqueles olhos, dissimulados por entre as memórias de alguém que nada mais queria para além do seu/nosso bem. Mas não muito mais tarde, somos confrontados com a realização de que o amor por quem se lamenta a terá levado à cegueira, selectiva, é certo, como sempre. Escolhemos o que queremos ver. Com a cegueira vem depois o medo de tudo se perder, mas a culpa não deixou nunca de ser nossa. No fim resta-nos a pergunta: conseguiremos também nós perdoar-nos por isso?

*
"Empty Note"

How could I ever know you?
When everything lies in disguise
How could I ever forget?
Those eyes looking for my weal

How could I ever know more
When everything is held by a threat
And how could I ever feel you?
Once again, without losing my mind?

(...)

Oh empty note
Shadows of my past
Made it to the end

How could I ever know you?

When you are miles and miles away

How could I forgive myself?

How blind and scared I was

*



As palavras encerram em si significados e motivações ocultas - "Such Words". Não é à toa que as permitimos saírem-nos da boca, nem da mesma forma, que as escolhemos prender cá dentro. Mas as palavras, quando ditas em voz alta, são elas próprias uma forma de racionalização dos nossos sentimentos. E isso assusta. No entanto é imperativo que o façamos, para que mais tarde não nos venhamos a arrepender. O limbo sem fim do "diz-não diz", apesar de convidativo pelo facilitismo do silêncio e da anuência, não levará a outro destino senão o da destruição do que se havia construído... se é que se abriu o espaço para que algo se construísse. A felicidade que dessas consecutivas omissões pode nascer, não será mais que momentâneos alinhamentos dos astros ou pequenos lapsos temporais em que tudo reluz na mais esplendorosa cor. Mas a felicidade, por defeito, peca por ser efémera. No fim de contas, fica tudo entre nós. 

*
"Such Words"

I felt this instant of desire
Before I went back to my head
And then I fall into pieces
And then we fall into pieces

Can it stay between us?
Among the other things you know
In this endless "in between"
I will never learn, I know

We shared a moment of happiness
Before the train pulls our hands
And then I fall into pieces
And then we fall into pieces

(...)
*


Estar apaixonado ou enamorado por alguém não tem definição curta e tangível que lhe faça justiça. No extremo pode levar à loucura, à louca ânsia de querer algo ou alguém. É um feitiço que na maior das liberdades não nos deixa ser livres - "Spellbound". É uma obra oculta e enganadora do nosso cérebro, em que, jogando aos dados com os mais pequenos químicos sinápticos, tanto nos deixa maravilhados pelos feitos e palavras do nosso outro, como nos consegue atormentar na sua ausência. Vêmo-lo e sentimo-lo quando o desejo é mais forte que os diques que o contém. Ou quando nós próprios os decidimos romper, para assim nos ser possível contrariar o desassossego que é regra, quando a satisfação do desejo permente não é respondida. É um mistério desta vida ao mesmo tempo que é um facto, tão transversal quanto corriqueiro, da existência humana. Mas é algo que nos é inerente e nos faz sonhar, nos leva a saborear o outro à distância num transe hipnótico do qual teimamos não querer sair. É uma dança de dois corpos, que não precisando de se tocarem, inevitavelmente se sentem. Será isso? 

Não sei. 

O melhor mesmo é ser correspondido. Tanto quanto sei daí poderá nascer um belo amor. Assim espero que aconteça convosco.


*
"Spellbound"

When you move
Under the moon
I can feel you
Slipping through to tantalize

When you sing
Your words soft and sincere
Oh I want you
More than I ever desired

There are things I don’t understand
Deep within my well
Then I wish to unveil myself
When I dance under your midnight prayer

I dance around, around, around, in circles
And I dance around, around, around, in circles

In a dream
Calm, surreal
I can taste you
Feel completely hypnotized

When you speak
The words I long to hear
Oh I want you
More than I ever desired

(...)
*


"Alone Together" de Ghostly Kisses é uma viagem circular ao nosso interior, onde quer queiramos quer não, somos instigados a revisitar o que queremos e não queremos. Fantasmas de pessoas de carne e osso, presentes ou há muito ausentes. 

Um pequeno grande disco onde se disserta sobre o amor na sua forma estéril e que não se deseja efémero. Margaux Sauvé dá-nos em palavras as suas formas e revelações, os medos que lhe são exclusivos e existenciais. Nele ouvimos ainda os seus delirantes encantos e inevitáveis desencantos. 

No fim de contas, aqui falou-se daquela que é a força mais poderosa que se conhece, chegando até a assumir contornos aditivos. Uma droga que nos prende à roda, roda essa que teima em girar até mesmo quando queremos saltar fora. Não conseguimos. Esta força, bem real, consome-nos dia e noite, e não devemos ser cobardes ao ponto de a deixarmos florescer onde sabemos não haver espaço e desejo de o ver crescer. 

De novo reitero: o melhor mesmo é ser correspondido e desimpedido. Obstáculos existem como provas da sua veracidade. Mais ainda, se espaço é preciso para se dançar, mais espaço ainda é necessário para que as asas do amor se abram de par em par. 

Metáforas à parte, só assim vale a pena e é possível dois seres que se amem poderem ser... simplesmente, aquilo que quiserem. 


rafael silva 



Comentários