Tom Waits - The Heart Of Saturday Night (1974)


***

" Stoppin' on the red
You're goin' on the green
'Cause tonight'll be like nothin'
You've ever seen
And you're barrelin' down the boulevard
Lookin' for the heart of Saturday night

(...)

Makes it kind of quiver down in the core
'Cause you're dreamin' of them Saturdays that came before
And now you're stumblin'
You're stumblin' onto the heart of Saturday night "


in (Looking for) The Heart Of Saturday Night

*


É o Sol quem nos traz a diurna luz que nos aquece nestas tardes de inverno enquanto nos permitimos vaguear pelas ruas das nossas cidades. É o tipo de programa de sábado que me sabe bem: beber um café aqui, outro ali. Curtir um pouco mais a pele numa esplanada antes de ir gastar uma nota pequena em também eles pequenos presentes de época, por sua vez também eles oriundos de pequenos mercados natalícios. (Não gastem demais - não vale a pena). 

Mas é depois de cruzada a divisória linha do horizonte, e já de noite,  que o Sol nos faz chegar a mais bela e mais evocativa das epígrafes - o luar. A Lua dá o seu aval, e assim, por sua vez devolve à terra mais uns quantos fotões provenientes do longínquo centro do nosso sistema planetário. 

A noite marca o tom e a Lua, lá do alto, ajeita-se confortavelmente na sua guarita. Chegou a hora de se correrem as cortinas, encerrando com elas mais um dia e devolvendo o anonimato e privacidade às habitações. É verdade que o efusivo e caótico ram ram citadino, típico dos vulgares dias de labuta, é mínimo aos fins de semana. A grande maioria das pessoas segue a norma... e a norma é trabalhar nos cinco primeiros dias da semana e folgar os últimos dois. Durante os primeiros cinco há também uma outra norma. Um recolher que, não estando contratualmente apalavrado, por sua vez mora no livro de regras do senso comum e é recomendável para quem tem que produzir na manhã seguinte. 

Não são aconselhadas, portanto, as boémias vivências típicas dos bares. Os balcões e mesas dos clubs são trocados por confortáveis sofás e apoios de pés. As refrescantes bebidas com os seus cubos de água sólida são trocadas por canecas de água fervida com sabor. Quiçá umas bolachinhas façam as vezes dos acepipes quando se quer enganar o estômago. A Netflix providencia ininterruptamente a mais recente série, numa torrente nada estanque de episódios. Mas eis que o sono, atrasado, se faz de complicado e não chega.. já por outro lado o episódio seguinte apressa-se a iniciar. Há impaciência e fome de conteúdo e por isso saltamos o genérico. Há muito que o esquecemos. Para a falta de sono, há quem recorra a uma ou outra bebida mais forte, daquelas servidas em curtas doses nos bares da cidade. Poderá será mais eficiente... e é, mas há mais opções na carta. Ouvi falar de certos óleos que, quando esfregados nas têmporas, nos relaxam. Experimentem. Experimentem também passar os olhos por aquele livro que compraram há tempos mas que não passaram das primeiras páginas. Diz que apressa o sono. Tendo oportunidade e companhia para tal, sugiro que se troquem as stories trazidas à vida nos vários ecrãs por uma agradável conversa. O (inter)locutor: alguém com olhos, ouvidos, boca e com disposição para trocar palavras e momentos. De carne e osso. Pode até não estar fisicamente presente mas a sua presença é notada. Faz-se ouvir e deve ser ouvido. 

Falo-vos da companhia que é a música. Falo-vos de um disco em particular que é obra de um artista mais particular ainda.

The Heart Of Saturday Night salta imensas vezes do meu rol de possíveis companhias para noites solitárias que passo em claro. Salta directamente para minhas as colunas e daí para o ar circundante até que me atinge os ouvidos. Quando os sábados à noite não envolvem o ritual nómada de ir de bar em bar, saltitando entre espaços lotados por pessoas e vozes que se sobrepõem e agigantam com o passar das horas. Quando não nos apetecem rodadas consecutivas até que tenhamos bebido o suficiente para não nos importarmos com o barulho. Quando simplesmente não nos apetece dançar. Quando tudo o que nos apetece é o conforto do nosso espaço. Quando tudo o que nos apetece é tempo de qualidade. 

Podemos não saber, mas por vezes tudo quanto precisamos é de uma boa dose de Tom Waits.


*
" I never saw the mornin' 'til I stayed up all night
I never saw the sunshine 'til you turned out the light
I never saw my hometown until I stayed away too long
I never heard the melody until I needed the song

I never saw the white line 'til I was leavin' you behind

I never knew I needed you until I was caught up in a bind
I never spoke "I love you" 'til I cursed you in vain
I never felt my heart strings until I nearly went insane

I never saw the east coast until I moved to the west

I never saw the moonlight until it shone off of your breast
I never saw your heart until someone tried to steal it, tried to steal it away
I never saw your tears until they rolled down your face

I never saw the mornin' 'til I stayed up all night

I never saw the sunshine 'til you turned out your love light babe
I never saw my hometown until I stayed away too long
I never heard the melody until I needed the song "


in Sand Diego Serenade


*

O dia de hoje é festivo para o senhor Waits, já que entra na sua sétima década de viagens elípticas em redor do astro gigante. Decidi relembrá-lo, parabenizá-lo e para sempre inscrevê-lo neste espaço com a indelével tinta com que se escreve na internet. 

Tom Waits, na altura com os seus vinte e cinco anos deu ao mundo The Heart Of Saturday Night. Eu, neste dia e com os mesmo vinte e cinco, deixo-vos este breve lembrete.

Esta Nota Longa é dedicada a um amigo e companheiro de muitas noites. Celebrado poeta urbano e muy digno encantador de instrumentos e de corações. Faz da sua voz o único e necessário cartão de visita para que se faça anunciado, imagem de marca que ao longo de vários anos foi cuidadosamente esculpindo. Dos cigarros fez o seu cinzel e do whiskey a mais áspera das lixas. 

Em The Heart Of Saturday Night, o seu segundo disco de originais, a doçura e delicadeza com que canta as palavras ainda é descendente assumida do seu álbum de estreia datado do ano anterior. Sinceras e descritivas, as suas letras atingem por vezes um romantismo visceral. Sem eloquentes adornos, as suas declarações de amor são directas e assumidas, envergando trajes de blues e jazz. Respirando o mesmo ar que Bukowski, as crus reflexões vêm-lhe do interior e materializam-se nos nossos ouvidos. O seu piano é o barco do qual ele é marujo e explorador. O improviso é pontual e quando tem de ser, mas sempre coerente do início ao fim. O beatnick que há dentro dele vai assumindo o leme do nas suas canções. A vertigem aqui ainda é outra, mas a homenagem está lá bem patente. Uma ode musical endereçada a Jack Kerouac. 

*

" And the radio's gone off the air
Gives you time to think
And you hear the rumble
As you fumble for a cigarette
And blazing through this midnight jungle
Remember someone that you met
And one more block, the engine talks
Whispers home at last
It whispers home at last
Whispers home at last
It whispers home at last
Whispers home at last "


in Diamonds On My Windshield

*

À semelhança dos seus mestres, as palavras são para ele um meio de tradução da realidade tangível e intangível. Palavras corridas que servem, não só mas também, para descrever e narrar a procura de Waits pelo coração figurativo de uma noite de sábado. As desventuras estão lá todas. A noite avança e a demanda continua. No fim restam os fantasmas. E que fantasmas são esses? Os fantasmas de sábado à noite, na voz e música de Tom Waits. 

*

" He tells you that you're on his mind
You're the only one he's ever gonna find
It's kind-a special, understands his complicated soul
But the only place a man can breathe
And collect his thoughts is
Midnight and flyin' away on the road. "

in Semi Suite

*


Pelo meio, Tom Waits também é actor. Personagem principal e exímio pintor dos seus nublosos quadros nocturnos dos quais o anterior Closing Time (1973) é exemplo mais que perfeito. Neles, damos de caras com uma densa cortina de fumo, risos sincopados e embriagados aos quais se juntam desafinados coros de copos, que teimam em tilintar fora de compasso. Por entre jogos de sedução, são muitas e sentidas promessas que ebriamente se firmam entre os presentes... pelo menos até ao raiar do Sol. Já na penumbra própria de um dos vértices do sítio, a luz de um dos candeeiros da sala ajuda a que na nossa retina se configure um sujeito. Está sentado a um canto. É uma silhueta de um fantasma na qual se distingue um boné, e que encontramos numa umbilical comunhão com o piano do qual, teimosamente, se mantém viva uma fina coluna de fumo. As suas melodias seduzem-nos e convidam-nos a ficar. O resto dos instrumentos ajudam e acomodam mais ainda a atmosfera. Desse canto, também as suas palavras ganham eco, até nos mais desatentos corações. Nelas, estão marcadas os encantos e desencantos... dele e de muitos. Radiografias sociais, por vezes genéricas, mas nem sempre anónimas, e que, não por coincidência, nos contam histórias que podiam bem ser singelos actos teatrais levados a cena no teatro da nossa existência. 

*

" Hearts flutter and race
The moon's on the wane
Tarts mutter their dream hopes
The night will ordain
Come schemers and dancers
Cherry delight
As a Cleveland-bound Greyhound
And it cuts through the night
And I've hawked all my yesterdays
Don't try and change my tune
'Cause I thought I heard a saxophone
I'm drunk on the moon "

in Drunk On The Moon
*


E bem... aqui, claro está, estou a centrar o referencial em mim. O "velho Tom" está para mim como um dos meus confidentes mais fieis, mais vividos e por conseguinte, mais sábios. A sua companhia já por muitas vez me trouxe a leviandade e combustível necessários para algumas das mais solitárias noites. 

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" The early mornin' final edition's on the stands,
And that town cryer's cryin' there with nickels in his hands
Pigs in a blanket sixty-nine cents
Eggs, roll 'em over and a package of Kents
Adam and Eve on a log, you can sink 'em damn straight
Hash browns, hash browns, you know I can't be late

And the early dawn cracks out a carpet of diamond

Across a cash crop car lot filled with twilight Coupe Devilles
Leaving the town in a-keeping
Of the one who is sweeping
Up the ghost of Saturday night "


in The Ghosts Of Saturday Night
*

Quando sentirem o chamamento, lembrem-se deste texto e deste álbum. Solitários ou não, não se esqueçam de mergulhar neste mundo de um dos maiores de sempre. De um modo geral, lembrem-se deste senhor que é o Tom Waits. 

Assim me despeço, para fazer companhia ao "velho Tom" na procura pelo coração de mais uma noite de sábado. Ele faz anos, eu mereço.


Até à próxima Nota Longa.


rafael silva




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