Tom Waits - Nighthawks At The Diner (1975)


-  Tenho saudades de um lugar: 
"Um lugar de convívio, 
música, 
dança, 
diversão 
e boémia de final de semana 
com os mesmos de sempre. -



Deste lado do ecrã quem vos escreve é alguém que permanece recluso, dentro do que vulgarmente se apelida de quatro paredes. Uma falácia, ou talvez não mais do que uma figura de estilo, empregue apenas para se passar a ideia de confinamento. Ainda não nasceu uma varanda na fachada do prédio, o que é uma verdadeira pena. Falta-me o milagre da vitamina D, o ar aquecido pelo sol e a boa disposição que nasce dos dois. Falta-me o primeiro café do dia e o resto do pedido, já debitado de cor, mal entro no café aqui em baixo. Relembro até, melancólico, a caminhada matinal até ao trabalho com os vários desvios, forçados, pelas estritas rotas dos outros. O apressado pulsar da cidade. O retorno ao fim do dia. O apressado pulsar da cidade. O repouso efervescente num copo de cerveja. As pessoas que me acompanham nesse ritual.

Mas enfim.

Esta é uma Nota Longa para se ler quando já não houver luz lá fora. Uma companhia para o vosso serão tardio, um pouco à semelhança do que vai acontecendo nos vossos telemóveis e computadores.  Os artistas multiplicam-se em sessões de música ao vivo em directo para as redes, em directo para nossas casas. São concertos ao vivo, os possíveis nos dias que correm. Este que vos trago é em tudo semelhante, mas nítido nas diferenças. Uma simulação, em diferido, com 45 anos de existência.

Já lá vamos.

Pergunto-me como serão os vossos dias. Os meus repetem-se, consecutivos, idênticos.

O que faço é levantar-me de manhã e arrastar o meu corpo, ainda mole e entorpecido pela melatonina, até à casa de banho contígua ao quarto de dormir. Dá-se aí início ao ritual, na presença do espelho ainda por embaciar, onde a profundidade das covas por baixo das outras covas de todos os dias é calculada a olho. Esses, esfregam-se, e de seguida espreguiçam-se os músculos.

Há ainda o ocasional urro, o bocejo certo e os estalidos crepitantes das articulações dormentes. Com sorte não se ouvem os vizinhos, com as suas vozes e dizeres que, amplificados na canalização, atravessam as paredes. Há a passagem da cara matinal pela água fria, e isso é essencial. Uns goles dessa mesma água ajudam a aclarar a garganta e a tonificar a voz. Lavam-se os dentes e toma-se um duche, que se quer rápido e revigorante e, por fim, veste-se a roupa de ir para o trabalho. Ou não. Tem dias. Por estes dias, tem mesmo dias. Por exemplo, há dias em que acordo com frio e nem o algodão já quente do pijama me manterá aquecido por mais umas horas. Nesses dias, opto pelo fato de treino que sempre é mais aconchegante. Por baixo dele vai a camisa, só porque sim - eu gosto de camisas. É a minha nova roupa de trabalho e, pelo que me é dado a espreitar pelas lentes redondas no topo dos monitores de cada um, é prática mais que comum. Falo apenas da roupa de trazer por casa, como é óbvio.

Nisto, chega a altura de descartar os resquícios de café que dormiram na cafeteira, e enchê-la de novo. Acendo a chama azul por baixo dela que, pelas superiores ordens físicas, irá fazer brotar o líquido escuro com que meio planeta acorda.

Muito calmamente vai-se despertando aos poucos, e quase que se contam as inspirações necessárias à preparação da primeira refeição do dia. Há quem escolha as notícias pela manhã para musicar este processo, mas eu já não. Essa música é a mesma da noite anterior, apenas muda a tonalidade. Não fujo à realidade nem a esqueço, não se trata disso. Trata-se sim de acautelar a sanidade. Não é a recusa da informação mas sim a dispensa do que não é informação. É apenas música repetitiva e exaustiva, que satura e cansa, acabando a moer a paciência que ainda tanto tem que aguentar. A esperança mantenho-a, pois confio nos profissionais que lá fora fazem o seu trabalho e nos protegem. Evitando esses ruidosos noticiários logo pela manhã, escolho antes o borbulhar do café que escalda na cafeteira e os estalidos dos metais que amarram o pão na torradeira.

Ultimamente têm-se feito ouvir os pássaros, calando o silêncio com melodias que há muito as cidades haviam esquecido. Eles, alheios a tudo o que se vai microscopicamente passando, estão certamente agradados com o restauro da paz e quietude das cidades. Alimenta-se o estômago com torradas e afaga-se o espírito com café, este último, em várias doses durante manhã, como se fazia "antigamente".

Há a hora de almoço que, por estes dias, não tem hora certa. Come-se quando há fome e, geralmente, preenche-se o prato com restos dos dias anteriores. Mais um café e estamos de novo sentados à secretária. É assim que se passa mais um dia de trabalho, em frente do computador, de volta do telemóvel, saltitando de chamada em chamada com outros como eu. Note-se a outra face da moeda, as regalias de se trabalhar a partir da sala, ou do quarto, ou de onde se queira, na verdade. Isto é, desde que a conexão de internet seja boa e a câmara esteja desligada, para poupar a banda larga.

Janta-se e, por fim, descansa-se...

O que vos apresento hoje é o meu vício mais ardente. Um homem pelo qual me enamorei da primeira vez que o ouvi. Ainda me lembro bem dessa noite. Tão inexplicavelmente apaixonante e inebriante nessa altura, ainda hoje o é.





"Well, an inebriated good evening to you all. 
Welcome to Rapheal's Silver Cloud Lounge. 
Slip me a little crimson, Jimson. 
Give me the low down, Brown. 
What's the scoop, Betty Boop? 
I'm on my way into town"

in Opening Intro, Nighthawks At The Diner



Lânguido na sua pose sob o piano, de frente para o microfone e encarando o reduzido público, de boné pendendo sob uma das faces contrapondo-se ao cigarro aceso na outra, vício que intermitentemente vai levando aos lábios. É assim que se apresenta Tom Waits na minha cabeça, apressando-se a dar-nos as boas vindas ao auditório que se senta diante dele neste lounge improvisado, bem ao estilo dele. Temos até direito a um recital, na clássica voz de Waits, da página dos classificados do jornal do dia - informações pertinentes em jeito de introdução à noite que nos espera. A partir de certa altura, posso até visualizar alguns pares que, cansados dos assentos, deslizam já por entre as notas graves do contrabaixo e os agudos do saxofone. Bem, pelo menos é assim que eu imagino. Pode ser que aconteça convosco.








O repouso a esta hora do dia deve fazer-se com o ambiente certo, isto é: luz de canto ligeiramente reduzida, um cadeirão com belas almofadas para conforto lombar, uma mesinha de pé junto a nós, para suportar o peso do cinzeiro e do copo meio cheio. Intimista, como a atmosfera de um lounge deve ser,  permitamo-nos a escutar um jovem Tom Waits e a sua banda, com jazz e beat spoken word na voz.



(...)
" A high pressure zone covering the eastern portion of a small
Suburban community with a 1034 millibar high pressure zone
And a weak pressure ridge extending from my eyes down to my cheeks
'Cause since you left me baby and put the vice grips on my mental health
Well, the extended outlook for an indefinite period of time
Until you come back to me, baby, is high tonight, low tomorrow
And precipitation is expected

That wraps up the weather for this evening
Now back to the eleven o'clock blues
Doctor George Fishbeck ain't got nothing on me! "

in Emotional Weather Report, Nighthawks At The Diner


A primeira impressão que se tem de um álbum é obrigatoriamente a sua capa, juntamente com o título que a encabeça. O interesse desta menção, neste caso em particular, prende-se com a origem da inspiração, dupla e clara, na famosa pintura de Edward Hopper, Nighthawks. Uma pintura que nos é familiar e na qual a quietude reina, naquele que será um cenário de madrugada já alta. Nesse cenário, o espaço apresenta-se tranquilo e desprovido de vida, num claro contraponto ao que se pretende transparecer na versão de Waits. Aliás, vão poder comprovar exactamente o contrário.



Nighthawks (pintura) – Wikipédia, a enciclopédia livre

Edward Hopper, Nighthawks, 1942


Fazendo jus aos seus primeiros dois discos, que lhe concederam um crescente estatuto enquanto compositor de canções, este poeta da vida voa mais alto quando o lugar do voo é o palco. 'Nighthawks At The Diner' é o lugar onde temos acesso ao carisma próprio de quem nasceu para apresentar a sua música ao vivo. Ainda que, simulando o ambiente live de um concerto de bar jazz em pleno estúdio, - com pessoas de verdade a ouvir, diga-se -, muito dificilmente conseguimos ficar indiferentes ao que ouvimos.



"Nighthawks at the diner of Emma's Forty-Niner
There's a rendezvous of strangers around the coffee urn tonight
All the gypsy hacks and the insomniacs
Now the paper's been read, now the waitress said

"Eggs and sausage and a side of toast
Coffee and a roll, hash browns over easy
Chili in a bowl with burgers and fries
What kind of pie? Yeah" "

in Eggs and Sausages, Nighthawks At The Diner


Desde os poemas mundanos sobre tudo e sobre nada, aos arranjos musicais da banda, às piadas e histórias que se intercalam nos interlúdios e se transfiguram depois em canções... acabamos por não ter hipótese. Rendemo-nos à intimidade do momento. É o toque especial, o toque que acaba por ser um dom, o de quem nasceu para entreter quem o quiser ouvir e ser um deleite para quem o quiser escutar.



(...)
" I'll be sleeping until the crack of noon
Midnight howling at the moon
And I'll be going out when I want to
Coming home when I please
Don't have to ask permission
If I wanna go out fishing
Never have to ask for the keys, no "
(...)

in Better Off Without A Wife, Nighthawks At The Diner


Falando na banda que o acompanha, Waits apresenta-se com um conjunto de músicos que lhe conseguiu captar toda a vibração e imprevisibilidade que encontramos no seu espírito jazz, acentuando-as quando assim se impunha e reduzindo-as quando o toque se queria mais ternurento. Esta bivalência, que lhe é reconhecida neste período criativo, faz-se notar também aqui. Um álbum ao vivo, com uma atmosfera em tudo filmográfica de um clube nocturno de jazz dos anos 50, atípico na sua concepção e execução, mas não só. O actor principal, tenro na idade e nestas andanças de gravação de álbuns, sendo este disco apenas o seu terceiro, eis que lhe permitiram a ousadia da criação de um álbum ao vivo. Não é de todo comum, sendo algo que não se tornaria a repetir na carreira do artista até ao ano de 1988, já na segunda reencarnação musical do artista.

Uma coisa é certa, nada como um álbum ao vivo para captar aquela que é a personalidade de um artista. Tom Waits, que de um caldeirão de influências encontrou uma essência a que pôde chamar de sua e, desta forma, confirmou desta forma a coroação que lhe haviam endereçado: o mais versado dos beatniks da música. É por isso que considero 'Nighthawks At The Diner' um marco na sua discografia, ao mesmo tempo que se assume como ponto transversal naquela que viria a ser a sua carreira discográfica: Tom Waits deverá soar a Tom Waits, tanto nos palcos como nos próprios discos.




(...)
" All my conversations now, I'll just be talking about you, baby
I'm boring some sailor as I try to get through
I just want him to listen now I say that's all you have to do
He said I'm better off without you, until I showed him my tattoo
And now the moon's rising, ain't no time to lose
Time to get down to drinking, tell the band to play the blues
And the drinks are on me, I'll buy a couple rounds
At the last ditch attempt saloon "
(...)

in Warm Beer And Cold Women, Nighthawks At The Diner


Um disco é feito por músicos e, para sorte do cantautor, o disco em causa é realmente digno de audição muito devido à execução exímia desses senhores. Sem falha alguma, sem guião a seguir, o instinto de quem tem jazz nas veias é o que é necessário e suficiente para acompanhar o estilo derivante de Waits. Assim, com Mike Melvoin nas teclas, Jim Hughart no contrabaixo, Pete Christlieb no saxofone e Bill Goodwin na bateria, as canções idealizadas por Tom ganharam vida própria.

Como referido anteriormente, o disco foi uma simulação "hollywoodesca", em pleno estúdio, de um verdadeiro bar de jazz. Uma empreitada que levou mesmo à instalação de mesas, cadeiras e um pequeno bar no interior no estúdio Record Plant, em Los Angeles. Para efeitos de gravação, quatro sessões foram organizadas nas duas noites últimas do mês de Julho desse ano. Houve bilhetes distribuídos pelos amigos dos músicos e assim se compôs a pequena plateia, indispensável à atmosfera que pretendiam. Porém, não só de um artista se compõem este género de noites e, quando o objectivo é gravar um álbum ao vivo, há que proporcionar o ambiente correcto a quem está a ouvir, preparando-os para o que virá a seguir. De acordo com Bones Howe, produtor do álbum, o espectáculo de abertura era um strip de uma conhecida de Waits, Dweana, antiga rainha do burlesco que este havia conhecido em tempos. Daí, aparentemente, resultou uma relação conjugal entre dança erótica e músicos virtuosos de jazz que ajudou a introduzir o público ao que aí viria.






Por tudo isto e por tudo o resto que só a audição atenta te poderá revelar, tenho um carinho muito especial por este álbum. De alguma forma, tem a capacidade de me pôr lá sem pedir grande licença, de me levar para outro tempo, outro lugar. Lugar esse onde eu gostaria de estar. Lugar onde, certamente, gostaríamos todos de estar. Um lugar de convívio, música, dança, diversão e boémia de final de semana com os mesmos de sempre.

Dizem que para viajar basta ler um livro, e sim, é verdade, mas não foi um livro que vos trouxe. Tendo em conta a altura por que estamos a passar, achei adequada esta viagem. 'Nighthawks At The Diner', uma viagem a um universo nocturno onde Tom Waits nos alegra, nos aconchega e nos reconforta. Tudo isto, nas nossas casas.

Mantenham-se seguros.


(...)

" Yeah... I think I'm gonna plant you now and I'm gonna dig you later
Make like a bakery truck and haul buns
Make like a hockey player and get the puck out of here
I gotta go see a man about a dog
I'll see you later
Thank you very much for coming this evening "

in Spare Parts 2 And Closing, Nighthawks At The Diner 



Nighthawks at the Diner

Tom Waits no Toff's Coffee Shop (6901, Hollywood Blvd),
local que serviu de moldura à capa do álbum.




rafael silva

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