Cícero - Canções de Apartamento (2011)




Cícero. 

Uma alcunha com importância histórica notável e que mora bem lá atrás no tempo. Uma alcunha bem redonda e que significa grão-de-bico, para que saibam. A história conta-nos que Marco Túlio Cícero foi um proeminente estadista da última República de Rom, tendo sido também advogado, filósofo e um óptimo orador e escritor, com grande ênfase nestas duas últimas qualidades. Tudo isto no século primeiro antes de cristo. A sua influência nas línguas latinas e no pensamento e literatura europeus é inquestionável, estendendo-se desde o renascimento até ao iluminismo. 

Mas chega deste tipo de História. Muito resumidamente, este Cícero foi uma figura e tanto. 

Mas...




" Ninguém soube
Que ele foi morar longe
Não, ninguém soube

Não foi ponto
Feriado ou desconforto
Pra ninguém
Soube
Diz a lenda
Que trocou suas certezas
Por alguns
Sonhos mágicos

Ninguém soube
Que ele foi morar
Onde ninguém cabe
Não foi ponto
O comércio estava pronto
E vendeu bem
No dia de São Ninguém

Ainda não fazem pessoas de algodão
Ainda não fazem pessoas de algodão
Ainda não fazem pessoas que enxuguem
Suas próprias
Mágoas "

in João e o Pé de Feijão, Canções de Apartamento (2011)



Dois milénios depois haveria de nascer no Rio de Janeiro um outro Cícero, este já de nome próprio - Cícero Rosa Lins. Quisera o destino que este nosso contemporâneo trilhasse também ele os seus estudos pela advocacia, mas o mesmo destino tinha outros voos para ele. O disco que o faz ser evidenciado nesta nota longa é este 'Canções de Apartamento', o seu primeiro trabalho em nome próprio. Escrito, composto, cantado, tocado e produzido por ele unicamente e a partir de sua casa, este disco acabou por sair à rua no ano de 2011. Na altura, disponibilizado de forma gratuita pelo próprio na internet, chegou a ganhar certos prémios perante a crítica brasileira, tendo merecidamente sido considerado um dos músicos revelação de 2011.

O que vos trago hoje são 35 minutos de música independente, caseira e emocional. Dez não-muito-longas canções que constituem o primeiro capítulo do universo musical deste cantautor brasileiro. Nelas, os ritmos da bossa são misturados com motivos populares e com melodias e arranjos menos típicos desse género. Não poucas vezes e sem darmos por ela, o que era cançãozinha bonita veste-se num ápice com roupas de rock. Bonito rock, subentenda-se.

Os versos são simples mas místicos e, na sua voz relaxada e bonita, caem muito bem. Com temáticas terrenas, Cícero não complica o que já por si não é complicado, bem pelo contrário. No fim acabamos compelidos a ir ler as letras por nós e, talvez, a revermo-nos nelas. Os brasileiros têm mesmo um jeito especial, a verdade é essa.



" Eu nem vi
Quando você espetou sua casa aqui
Quando você espalhou seu suor em mim
Ameno
E mesmo assim

Eu nem vi
Quando você acordou
As cortinas
Descobriu meu quintal

Não se esqueça
Por enquanto
De esquecer alguma coisa pela casa
E vir buscar do nada

Nem vi você chegar
Foi como ser feliz de novo
Nem vi você chegar
Foi como ser feliz

Ainda faz
Um tempo bom
Pra desperdiçar comigo
Podemos enfeitar domingos

Nem vi você chegar
Foi como ser feliz de novo
Nem vi você chegar
Foi bom te ver sair de novo "

in Ensaio Sobre Ela, Canções de Apartamento (2011)


Esta é a base composicional do disco. Sempre doce, delicado e verdadeiro, o disco faz-se grande nos momentos de entrada dos instrumentos eléctricos e foles de acordeão, a título de exemplo. Num golpe síncrono, arranjos eléctricos entram em cena e fazem o seu papel, avivando as canções com refrões como quem aviva uma fogueira já ténue. Não se impõem em demasia mas garantem deste modo uma maior e distintiva robustez às canções. A tonalidade do álbum está assim marcada por esta dualidade de mundos, o acústico e o eléctrico, mas é no coexistir de ambos que tudo funciona melhor. É aqui que Cícero consegue brilhar.





" Deixa pra depois
O que já não precisa esperar
E tudo que não deu pra consertar
Por culpa do depois

Não tem jeito não
A gente sempre espera piorar
A gente sempre deixa de cuidar
Do que já tem na mão

Mas é sem querer
Sem querer

Então, taí
Nosso refrão
Taí

Deixa pra depois
O que já não precisa mais deixar
Mudando as mesmas coisas de lugar

A certa coisa certa a se fazer
E diz que só queria descansar
De quem a gente mesmo escolheu ser
Sem querer
É sempre sem querer

Então, taí
Nosso refrão
Taí

Sem graça "

in Eu Não Tenho Um Barco, Disse A Árvore, Canções de Apartamento (2011)


As canções com que aqui se salpicou o texto são meramente exemplificativas da alma do Cícero, o advogado que nos encanta com a voz e hipnotiza com os seus mil instrumentos. São a amostra de algo maior. De forma alguma se exclui a necessidade de irem ouvir o álbum por inteiro. Vão, atrevam-se.




" Quando
De vez em quando
Talvez um tanto
Faz tanto fez
Passando a vez
De par em par
Le petit prince égoïst
E sua flor de uísque
Em seu planeta sem cor
Mas quem se importa?

Somos
A vez dos zonzos
Talvez enquanto
Quisermos ser
Daqui pra já
Eu e você
Daqui pra lá
Não vai sobrar
Nada pra ser
Mas quem se importa?

É sexta-feira, amor!
Sexta-feira!
É sexta-feira, amor!Sexta-feira!
Tanto
Faz qualquer canto
Pra qualquer santo
Que saiba ler
Que queira dar
Sem receber
Que esteja a par
Do que vai ver
De onde vai dar
Mas quem se importa?

É sexta-feira, amor!
Sexta-feira!
É sexta-feira, amor!
Sexta-feira!
É sexta-feira, amor!
Sexta-feira!

Tem quem queira!
Giramundocão  "

in Ponto Cego, Canções de Apartamento (2011)



A mim só me cabe avisar-vos do vício que se poderá desenvolver após a primeira audição. Virá seguramente a segunda e depois possivelmente a terceira. No meu caso foi o que aconteceu durante a tarde, em loop, desde o momento em que uma das músicas aqui transcritas deu à costa no feed do meu facebook. Uma bela surpresa que fez o meu dia. Obrigado, pessoa.

"Canções de Apartamento": um caldeirão de canções que a certa altura extravasaram da alma de Cícero, ganharam o seu primeiro corpo ainda em sua casa, até que cresceram o suficiente para migrarem até casa de cada um de nós. A magia da internet. 

Nove anos depois, este disco ganha um novo significado.

Para todos os que se encontram fechados num apartamento - há dias e dias consecutivos -, considerem este disco um mimo especial endereçado a vocês. O remetente é o Cícero. Eu sou um mero envelope.

Mantenham-se sãos. Mantenham-se bem. Um abraço.





rafael silva


Comentários

Enviar um comentário